quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Banalidade na Comissão de Direitos Humanos da OAB

   
No dia 16 de outubro, o Coletivo Território B participou da Instalação da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Jabaquara, apresentando "Banalidade". A experiência foi incrível, e é muito bom saber que tem gente no "mundo das leis" que luta do mesmo lado que a gente!  Abaixo, o belo discurso do Pedro, diretor da Comissão. 








DISCURSO DE INSTALAÇÃO DA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS
OAB – JABAQUARA

Fico muito feliz em poder estar propondo uma forma diferente de ocupação deste espaço. Me sinto muito à vontade para trabalhar nesse formato, descontraído, sem padronizações e formatações. Nesse modelo que estamos dispostos, a troca de olhares, de afeto e de informações é muito mais intensa e, por isso mesmo, muito mais efetiva. Quando falamos em Direitos Humanos, falamos de troca, no sentido mais genuíno da palavra.

Agradeço de coração a presença de todo mundo que está aqui hoje, neste evento tão importante para mim e para a Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção Jabaquara. Manifesto a minha gratidão ao coletivo Território B, que abraçou a ideia de pronto e nos brindou com uma peça de teatro que aborda um tema tão significante, como o direito à moradia. Sem moradia uma pessoa não tem endereço e, sem endereço, uma pessoa não consegue matricular seu filho na escola, não consegue abrir uma conta no banco e, sem uma conta no banco, uma pessoa não consegue trabalhar com carteira assinada. Sem trabalho, uma pessoa não consegue se alimentar, sem alimento uma pessoa não tem saúde e, sem saúde, uma pessoa não pode buscar um lugar para morar. Coletivo Território B, espero encontrar vocês muitas, muitas outras vezes!

Presidente Ricardo, como um sujeito nascido no interior, em Birigui, eu costumo dizer que eu sou um sujeito matuto, ensimesmado e tímido. Lá na minha terra é normal ser assim, nós demoramos para fazer amigos, para criar intimidade, para descontrair. No entanto, quando nós chamamos alguém de AMIGO lá na minha terra, pode ter certeza que esse título e esse sentimento é tão sincero quanto a nossa matutice! Nesse momento quero dizer que te considero um amigo, um amigo que me apoiou num projeto diferente, numa metodologia diferente, num estilo diferente. Agradeço de coração pelo apoio e pela amizade que, espero, se solidifique cada dia mais. Na sua pessoa, Ricardo, abraço os membros da secretaria executiva e os outros advogados e advogadas que conheci aqui na OAB, que também me apóiam e são grandes entusiastas dessa nova forma de falar sobre Direitos Humanos.

A Comissão de Direitos Humanos ainda está em fase de constituição, estou articulando com outros parceiros, mas quero, neste momento inaugural, agradecer a dois amigos em especial, que já estão integrando e trabalhando duro junto comigo pelos Direitos Humanos. O primeiro é um amigo de militância, indígena Tupinambá que foi um dos principais interlocutores para a minha aproximação da luta indígena no Brasil, o parceiro Sassá Tupinambá. Tenho aprendido muito com o Sassá, tenho aprendido o que é militância, o que é luta indígena e o que é lutar pelos Direitos Humanos. A segunda amiga é a Deise Cardoso, enfermeira de formação e que atualmente está cursando Direito, foi minha aluna e tem se dedicado com todas as forças à militância pela garantia dos Direitos Humanos. Obrigado pelo apoio, Sassá! Obrigado pelo apoio, Deise!

Agradeço a presença de amigos, colegas de trabalho, da minha família (na pessoa da minha irmã), enfim, quero que todas e todos se sintam acolhidos com o meu melhor abraço!

Pensar em uma Comissão de Direitos Humanos exige um esforço conceitual relativamente complexo, pois se trata de refletir o que vem a ser, inicialmente, “direitos humanos” e, depois, o que caberia a uma Comissão de Direitos Humanos desempenhar. Falar em Comissão de Direitos Humanos exige explicar que não somos crias do Feliciano e que nossa missão é lutar pelos direitos de TODOS! No entanto, apesar disso, nossa missão é um pouco menos complexa, pois trata de pensar uma Comissão de Direitos Humanos dentro da Ordem dos Advogados do Brasil.

Pensar em direitos humanos na OAB nos poupa, de certa maneira, de termos de recorrer a disputas conceituais, teóricas, acerca do tema, pois falar sobre uma Comissão de Direitos Humanos na OAB nos coloca diante de um compromisso bem mais prático e com um histórico bem mais sólido.

Pensar direitos humanos na OAB não é uma atividade focada de maneira isolada apenas no futuro (“no que se vai fazer”), mas fundamentalmente na memória, ou seja, no que já foi feito. A Ordem dos Advogados do Brasil, sucessora do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, teve sua história consagrada na luta pela coisa pública e pela democracia, passando pela 2ª Guerra Mundial e culminando no papel imprescindível desempenhado pela instituição durante a ditadura militar brasileira.

No dia 27 de agosto de 1980, a funcionária Lyda Monteiro da Silva sofreu um atentado a bomba, que foi enviada em um envelope endereçado ao presidente do Conselho Federal, Eduardo Seabra Fagundes, ocasião em que a Seccional paulista e o presidente nacional da Ordem, na qualidade de delegado do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, insistiam na identificação dos agentes dos Serviços de Segurança suspeitos do seqüestro e agressão do Advogado e Professor Dalmo de Abreu Dallari, em 02 de julho de 1980.

Mesmo diante de inúmeros momentos de autoritarismo e ditadura militar, a OAB se fez presente e participou do processo de redemocratização do Brasil, que se fortaleceu com a Constituição de 1988, valendo citar a ADPF 153 que arguiu a inconstitucionalidade da Lei de Anistia brasileira de 1979, defendendo no Supremo Tribunal Federal uma compreensão democrática do tema, semelhante à posição assumida por vários países vizinhos da América Latina, como a Argentina em relação à Lei do Ponto Final e a Lei de Obediência Devida, bem como pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Muitas das batalhas travadas pela OAB, a exemplo da ADPF 153, representaram marcos históricos relevantíssimos para a democracia, o que exige de nós a memória permanente desses feitos para que o papel democrático da Ordem jamais seja afastado dos seus objetivos. Lembrar para orientar o futuro e também o presente, que permanece maculado pelos ranços de truculência de agentes do estado que parecem não ter, ainda, que o Estado é do POVO e não algo exclusivo de apenas um grupo ou de apenas uma classe. E já que temos um histórico de luta pelos Direitos Humanos, nossa tarefa de pensar a nossa Comissão do Jabaquara se torna, por isso mesmo, um pouco mais fácil.

Falar de Comissão e Direitos Humanos na OAB, e em especial na OAB Jabaquara, é algo que não pode acontecer de forma destacada e distante do projeto de consolidação plena da democracia, e isso significa não aceitar a posição confortável de assumir como verdade absoluta a ideia de que a democracia é simplesmente a vontade da maioria. Essa ideia que vincula a democracia à vontade da maioria esquece que os direitos fundamentais são direitos oponíveis não apenas ao Estado, mas também às maiorias (para fazer referência à lição do professor português José Carlos Vieira de Andrade). Sim, senhoras e senhores, os direitos humanos são instrumentos para garantir a dignidade de todos, seja da maioria, seja da minoria.

Normalmente, quando os direitos humanos são colocados em pauta, muitas pessoas iniciam uma sequência de ataques no sentido de dizer que os direitos humanos só servem para defender “bandidos”.

Falas permeadas de ódio, reclamando que os direitos humanos não vão à casa das vítimas e que os direitos humanos só vão às casas dos “bandidos” tomam os espaços de discussão sobre esse tema tão relevante. Exatamente por isso nos propusemos refletir sobre quem são os destinatários dos Direitos Humanos e por que motivo os Direitos Humanos são tão importantes.

De início, cumpre responder de maneira bastante didática àqueles que dizem que os direitos humanos são “coisa de bandido” e que os “direitos humanos não vão às casas das vítimas”. De fato, meus amigos, os direitos humanos não vão à casa das vítimas, como também, certamente, não vão a lugar algum, pois, afinal, os direitos humanos não têm pernas! Os direitos humanos são, isso sim, o FUNDAMENTO de uma atitude e, exatamente por isso, são as pessoas que entendem e assumem esses fundamentos que vão a esse ou aquele outro lugar imbuídas desse fundamento para que, com suas atitudes, mudem a situação de injustiça que elas entendem deva ser mudada.

É o que o coletivo Território B faz quando apresenta uma peça de teatro na OAB; é o que eu faço quando entro numa sala de aula; é o que nós fazemos quando buscamos realizar a Justiça ou quando lutamos para sermos respeitados no exercício da nossa profissão, seja no balcão do cartório, seja na sala de audiência quando somos obrigados a assumir posições de submissão e, mesmo assim, ouvir absurdos de juízes que não querem entender as razões que justificam os nossos pedidos de tutela antecipada.

A utilização descontextualizada do termo “direitos humanos” desconsidera que esses diretos dizem respeito a um conjunto de garantias que protegeram os cidadãos contra o poder arbitrário do estado absolutista, garantias que permitiram aos trabalhadores se organizarem contra o trabalho servil, contra o trabalho escravo e infantil, bem como contra as altíssimas jornadas de trabalho e a ausência de programas de seguridade social. Garantias que, após a Segunda Guerra Mundial, assumiram um compromisso com a paz mundial e a não repetição do genocídio por motivos étnicos, religiosos ou ideológicos (como o genocídio judeu, armênio, indígena e tantos outros), como ocorreu no nazismo e também nas ditaduras militares do século XX.

Entender que os direitos humanos são direitos de todos e somente podem ser pensados em regimes democráticos, é um esforço de compreensão de que a democracia não deve ser reduzida a direito da maioria, considerando a ideia de democracia que busca, sim, obter legitimidade no consenso da maioria, mas que também, e principalmente, exige que esse consenso seja resultado de um momento participativo anterior, onde todos, inclusive a minoria vencida, tenha tido oportunidade de participar dos debates, de manifestar suas opiniões, de sugerir alternativas e de se apresentar enquanto grupo divergente e, por isso mesmo, enquanto grupo que faz viva a diversidade protegida pela nossa Constituição.

Nesse sentido, uma Comissão de Direitos Humanos da OAB não pode se afastar dessa concepção ampliada de democracia, e isso deve começar pela reflexão a respeito do próprio nome “Jabaquara”. Estamos diante de uma palavra indígena numa cidade que não conhece as dezenas de etnias indígenas que vivem no espaço urbano e que para cá vieram em razão dos ataques sórdidos cometidos contra elas pela colonização e pela ditadura militar brasileira. São Paulo é a segunda cidade no ranking de cidades com o maior número de indígenas do Brasil. O Relatório Figueiredo, recentemente encontrado no Museu Nacional do Índio, mostra que várias etnias foram exterminadas por injeções de varíola durante a ditadura militar e reconhecer esse genocídio como motivo do deslocamento das populações indígenas para os centros urbanos é uma questão de honestidade histórica!

Já que Jabaquara, em Tupi, significa “refúgio dos fugidios”, que esta Comissão de Direitos Humanos seja um refúgio de pessoas e grupos historicamente invisíveis. Isso para dizer que Democracia tem mais a ver com a diversidade do que com a mesmice.

Pensar Direitos Humanos e Ordem dos Advogados significa compreender que, como ensinou Boaventura de Sousa Santos: “(...) as pessoas e os grupos sociais têm o direito a serem iguais quando a diferença os inferiorizar, e o direito a serem diferentes quando a igualdade os descaracterizar”. E, mais ainda, significa entender que, como afirmou Raimon Panikkar, “uma democracia não pode ser IMPOSTA e, ainda assim, permanecer democrática”.

Falar em direitos humanos na OAB significa entender que, além do fato de as pessoas serem diferentes em cultura, desejos, anseios e também em traumas e angústias, as pessoas também são diferentes em relação à facilidade de acesso aos bens da vida que, de tão fundamentais, foram considerados “Direitos Humanos”.

Nesse sentido, é missão de uma Comissão de Direitos Humanos da OAB entender e ensinar que a aplicação dos Direitos Humanos exige a compreensão de que uma pessoa pode precisar ter mais do que perdeu para ter de volta simplesmente, e exatamente, o que perdeu. Compreendendo isso, será possível vislumbrar a importância dos Direitos Humanos num país em que, de acordo com o Mapa da Cor dos Homicídios no Brasil, de 2012, do total de pessoas mortas entre 2002 e 2010, 65,1% eram negras e que, desse total, 69,1% eram jovens negros. E mais, que a taxa de homicídio de indígenas aumentou em 48% de 2002 a 2010, e que o suicídio entre jovens indígenas supera em 60% a média nacional.

Diante desse cenário, fica mais fácil definir e entender que uma das missões da Comissão de Direitos Humanos da OAB é exatamente a exposição das feridas, o trabalho para que as pessoas considerem que, se no lugar de uma criança, alguém enxergar um monstro, isso não ocorre pelo fato de essa criança ser má por natureza, como diria Lombroso, mas pelo fato de que, em algum momento, a infância dessa criança lhe foi roubada.

É missão de uma Comissão de Direitos Humanos sempre lembrar as pessoas que, como disse o escritor brasileiro Raduan Nassar, “é impossível exigir um abraço de afeto daquele de quem nós amputamos os membros”.

Enfim, Comissão de Direitos Humanos e OAB significa transversalidade, interdisciplinaridade e diversidade, pois é a transversalidade e a interdisciplinaridade que orientam o diálogo... e a diversidade e o diálogo que orientam a democracia. Negros, indígenas, mulheres, LGBT, idosos, cidades, culturas, educação, tudo dialoga com os Direitos Humanos, pois os direitos humanos são mais do que artigos de lei; direitos humanos são, repito, FUNDAMENTOS de um sentido de luta por direitos.

Reconhecer o caráter transversal, educativo e sensibilizador da Comissão de Direitos Humanos da OAB Jabaquara, bem como a participação de toda a comunidade, dos advogados e dos estagiários, será fundamental para o êxito dos trabalhos que pretendemos desenvolver.

Para encerrar, quero citar um poema de Bertold Brecht, que demonstra a importância da sensibilidade. O poema “A Fumaça” diz:

A pequena casa entre árvores no lago.
Da chaminé sobe fumaça...
Sem ela
Quão tristes seriam
Casa, árvores e lago.

Sem a fumaça, que representa a presença do Humano na casa, tudo seria triste. A proposta de sensibilização tem exatamente a finalidade de nos capacitar para que nós possamos enxergar para além da fumaça


Pedro Pulzatto Peruzzo